Mentiras, fake-news e lorotas

Num outro mundo possível, as declarações que as pessoas fazem viriam etiquetadas com algum tipo de rótulo: mentira, fake-news, lorota, lenda, história de pescador, fofoca ou algo nesse sentido. Mas não é assim que a comunicação funciona no nosso mundo. Pra muita coisa que lemos e ouvimos, temos que ter um radar de bobagem ligado. Ernest Hemingway disse certa vez que o escritor precisa vir de fábrica com um detector de bobagem. Nem todos os escritores nascem com isso, claro, senão não teria tanta literatura ruim atulhando livrarias, sebos e bibliotecas.

No caso do ouvinte ou leitor, a questão é um pouco diferente, mas a analogia vale como ilustração da nossa capacidade de se deparar com um conteúdo que nos comunicam e refletir sobre a plausibilidade dele. Ninguém é totalmente cético, e ninguém é totalmente dogmático. O ateu ou agnóstico são dogmáticos no seu ceticismo, e o crente (em sentido lato) é a todo momento convidado a crer, pois é da nossa natureza também a desconfiança. Todo mundo tem um pouco de São Tomé.

Claro, há um lado social ou antropológico na equação. Tendemos a acreditar mais nas pessoas que são mais próximas, como família, amigos, comunidade, líderes religiosos, líderes políticos de mesma inclinação ideológica; e a desconfiar de desconhecidos e líderes religiosos e políticos de agremiações que professam crenças diferentes das nossas.

Que pessoas usem os meios de comunicação para espalhar aos quatro ventos as suas opiniões eu acho natural e até interessante. Faz parte da democracia. Vivemos na era da comunicação: podcasts, videocasts, redes sociais. Qualquer tagarela pode hoje pegar seu celular e atingir milhões de pessoas em segundos. Mas é sempre bom a gente ter ligado o nosso radar de bobagem ligado. Afinal, assim como há muita informação, também há muita desinformação.

Vou tentar convencer vocês de que há pelo menos três tipos de “inverdades” que circulam na sociedade. A mentira, a fake-news e a lorota. Tentemos separá-las.

A mentira tem duas características essenciais: é aquele enunciado que é contra os fatos e que tem a peculiaridade de que quem o enuncia sabe que está indo contra os fatos, e, portanto, quer enganar o seu ouvinte. Um exemplo. Imagine um adolescente que mente para os pais que fez a lição de casa, quando na verdade passou a tarde inteira jogando videogame. Ele sabe que não fez a lição de casa e tem a intenção de enganar.

A fake-news é parecida. Ela é um enunciado criado para ir contra os fatos, criado para enganar. Mas há um porém: apenas quem o criou sabe disso. Quem passa a circular a fake-news acredita que ela é verdadeira e não tem, portanto, a intenção de enganar ninguém. Há toda uma indústria de criação dessas notícias e histórias. Para dar um exemplo (há tantos por aí que é até difícil escolher), no começo do ano passado circulou uma notícia de que vários membros do governo respondiam a processos na justiça. Um deles era o ministro dos direitos humanos, Sílvio de Almeida. Sílvio é jurista, portanto, é natural que seu nome apareça em muitos processos. Essa é uma das mecânicas desse tipo de inverdade: de um fato se cria uma fake-news. Essa é a definição estrita de fake-news: uma notícia inventada.

A lorota é um pouco mais complexa. O que chamo de lorota é inspirado no conceito de ‘bullshit’ do filósofo Henry G. Frankfurt (‘On bullshit’, Oxford, 2005). Outros termos vernáculos se aplicariam aqui, creio eu, como ‘bobagem’ ou ‘besteira’. Na essência, a lorota é uma ideia em que o falante acredita, mesmo que vá contra os fatos. A intenção de enganar não é crucial aqui, embora possa estar presente. Muitas vezes acontece o oposto, ele tem a intenção de esclarecer, ou supõe, ingenuamente, estar do lado de uma verdade que só ele é capaz de ver. A famosa doutrinação esquerdista das crianças é uma dessas lorotas. A conspiração dos homossexuais e sua ideologia de gênero para destruir as famílias é outra. O essencial aqui é que quem conta uma lorota não está nem um pouco preocupado com a verdade. Quem mente sabe que está enunciado algo falso, já quem conta lorota, não está preocupado com os fatos, está preocupado em criar uma situação que esteja de acordo com sua visão das coisas, sejam elas falsas ou verdadeiras.

Tanto a mentira, a fake-news e a lorota são ideias que só confundem o debate público e nos fazem perder tempo para desmenti-las. Há alguns complicadores do nosso tempo. A opinião pública não é mais formada apenas por especialistas em buscar a verdade, como jornalistas e cientistas. Agora mesmo o seu vizinho ou vizinha pode estar pensando em criar um podcast para falar sobre tarô, o campeonato de futebol de botão da Suécia, ou como ganhar dinheiro com apostas. E no meio dessa balbúrdia, quem tem espaço no debate público acaba sendo impelido ou compelido a emitir opiniões sobre temas que não domina ou, pior ainda, sobre os quais é completamente ignorante. Acontece que quem está no espaço público, normalmente, se expressa bem, sabe usar as palavras. E nada mais sedutor do que alguém que fala bem. Pessoas que falam bem chamam a atenção, conquistam nossa confiança. Pouco importa o conteúdo, importa a forma. Um podcast ou videocast bem produzido, com pessoas com aparência de especialistas em alguma coisa falando vai ter repercussão, mesmo que o conteúdo seja um monte de lorota.

(Texto a sair no Jornal Caiçara https://jcaicara.com.br/)

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Esse é um tema quente e tão amplo que certamente deixei de tocar em coisas importantes, especialmente o papel da crença do falante sobre o estado de coisas que enuncia. Ele é fundamental desde uma simples asserção até na mentira. Notem que para o Frankfurt, na lorota o elemento fundamental é o desprezo por qualquer conexão com os fatos.

Cinema multilíngue

De um modo ou de outro, o tema da linguagem acabou perpassando alguns filmes que concorreram ao último Oscar. Deve ser uma das consequências da globalização. E a arte do nosso tempo replica em alguma medida pop a Babel em que vivemos.

Causou um burburinho que Napoleão seja um filme falado em inglês e não em francês. Talvez os franceses esperassem também que o Oliver Stone tivesse escalado um Roman Duris para ser Napoleão, e não um Joaquim Phoenix, e uma Adèle Haenel para viver Josephine. Vai saber. Não acho que os italianos tenham ficado chateados que a série Roma tenha sido falada em inglês, assim como os suecos, noruegueses e dinamarqueses não devem ter ficado chateados que Vikings (série produzida por canadenses, a propósito) também seja falada em inglês e não nórdico antigo. Claro, estou brincando, mas o fato de o francês do Napoleão estar mais próximo da gente do que o latim de Júlio César e Marco Antônio é um bom argumento pra pedir que um filme sobre um dos maiores personagens da história da França e da Europa fale no cinema a sua língua materna.

No filme Anatomia de uma queda, Sandra é alemã, o marido francês e eles conversam em inglês, entre si e com o filho, Daniel. É uma casa multilíngue. Creio que não deva ser incomum na Europa esses relacionamentos internacionais, nem crianças vivendo em lares, escolas e bairros multilíngues. Na verdade, embora a Europa como um todo seja um território bem variado linguisticamente, essa pluralidade não é novidade. Júlio César quando foi invadir a Gália se deparou com os povos celtas falando línguas que os romanos não conheciam. Lembrando que os próprios romanos viviam em situação de diglossia. As diferenças entre o latim vulgar (falado pelos escravos, soldados, camponeses etc.) era diferente do latim clássico, que era a forma escrita e cultivada pelas classes altas e letradas de Roma, já naquela época pouco antes de Cristo. No filme, em certo momento, há uma discussão entre o casal sobre o tema. O marido não gosta que Sandra fale em inglês com o filho, já que eles moram na França.

Já em Vidas Passadas temos uma coreana, Nora, que se muda com a família para o Canadá aos 12 anos. Ela ainda fala coreano com a mãe, mas, além de ter passado a adolescência no Canadá, como ela se torna uma dramaturga de relativo sucesso em Nova Iorque, “sua língua” agora é o inglês. Aos vinte e poucos anos, ela retoma o contato com um amigo de infância que ficou na Coréia do Sul e eles conversam em coreano. Pouco depois, ela sente que eles estão ficando apegados, mas a distância é muito grande. Então, ela decide parar de falar com ele. Eles só voltariam a se falar outros 10 depois. Nesse meio tempo Nora se casa, e eles se encontram quando ele briga com a noiva e vai a Nova Iorque visitar ela. Uma das falas mais significativas do filme é quando o marido dela diz algo bastante poético: “Você sonha em um idioma que eu não entendo. Parece que há um lugar inteiro dentro de você que eu não consigo acessar”.

Por fim, em Ficção Americana a questão é menos explícita. Monk é um negro de classe média alta. Seu pai era médico, seus irmãos são médicos, mas ele é escritor e professor universitário. Sua “mágoa” com o mercado literário é que ele não é lido como um escritor em sentido lato. Sempre o enquadram como um escritor negro, mesmo que os temas de raça não sejam o seu objeto literário. Suponho, então, que ele não escreva no Black English, mas no inglês standard. Mas quando ele resolve escrever um livro para mostrar que o mercado literário está interessado nos negros não pelo mérito literário, mas por certo tipo de história que perpassa a vida deles nos Estados Unidos (violência, abandono parental e desestruturação familiar, abuso de drogas e álcool etc.), ele escreve um romance autobiográfico criando como autor-personagem um condenado fugitivo da prisão. Mas como o livro é comprado por uma grande editora e passa a fazer sucesso, ele precisa mudar sua forma de falar (e até seus trejeitos físicos) para lidar com as consequências do sucesso editorial. O livro ter como título um palavrão me parece significativo dessa necessidade de marcar linguisticamente que o autor é alguém de classe baixa e pouco instruído.

Dado seu valor cultural, como veículo de expressão de valores, costumes, hábitos, entre outras coisas, as línguas fazem parte da nossa identidade. Daí a reclamação dos franceses, creio. E ao mesmo tempo vivemos num mundo em que é possível alguém se candidatar a empregos em qualquer lugar do mundo, a entrar em contato com pessoas de países diferentes pelas redes sociais e a aprender os idiomas mais falados do globo usando um aplicativo para celular como Duolingo ou Babbel. Daí ser inevitável relações amorosas internacionais, e crianças crescendo em lares bilíngues.

Férias

Nota inicial

Praticamente abandonei esse espaço no ano passado. Espero conseguir voltar a publicar aqui, nem que seja só pra jogar na rede algumas coisas que tenho escrito. Tenho publicado mensalmente crônicas e resenhas no Jornal Caiçara de União da Vitória (PR). Isso tem me motivado a retomar esse espaço, embora eu tenha perdido um pouco a motivação pra fazer divulgação científica de linguística. Mas como escrever e falar de linguística são meus vícios intelectuais, sigo na peleia, mais por teimosia mesmo.

Calhou de eu só me lembrar do livro Infância do Graciliano Ramos só depois de ter escrito a crônica. É um livro de crônicas/memórias de infância. Então, fica a dica.

Férias

Emprestando as palavras de Manoel de Barros, confesso: eu tenho cacoete pra vadio. Como é bom acordar sem pressa pra acordar; dormir sem ter hora pra dormir; almoçar na hora que a fome aparecer… ler por puro deleite, e não pela obrigação de ler. Dedicar-se ao ócio e à contemplação, sem que nada tenha lá muita da tal da pressa. Férias é um negócio abençoado, convenhamos!

A sociedade tem um pouco de inveja de nós professores, pois sempre teremos folga nas festas de final de ano, e, principalmente, férias em janeiro. Já que o salário e as condições de trabalho são precárias, que pelo menos preservem esse direito como cláusula pétrea da Declaração Universal dos Direitos do Trabalhador. Para um capitalista deve ser um absurdo pagar para que o trabalhador tenha folga. “Porque lá no país XYZ não existe férias”. Ainda bem que vivemos num país do séc. XXI. Pelo menos nisso somos vanguarda.

Nem todo mundo é como os promotores públicos e juízes, que têm 60 dias de férias. A maioria dos professores têm 45 dias. Em algumas cidades, os professores têm 30. Em tese, todo trabalhador tem direito a esse descanso anual. O justo pelo justo. Claro que dirão que falo como membro da classe, mas se eu fosse presidente, todos os professores teriam 60 dias de férias, como os juízes.

Li nalgum lugar que o ideal é que se tenha férias parceladas em períodos de 10 a 15 dias. É o tempo adequado para que se descanse adequadamente a mente e o corpo. Pessoalmente, acho razoável. Férias muito longas tiram a gente do ritmo, como se a gente desaprendesse a trabalhar. Férias duas vezes ao ano. Quando eu for presidente, outra medida vai ser baixar um decreto para que todo trabalhador brasileiro tenha esse direito.

Contam por aí que há gestores públicos preocupados com o bem-estar dos trabalhadores, que nas férias escolares não têm com quem deixar seus filhos. Daí esse tipo de gestor invocar que não tem motivo para professor ter tantas férias. Na verdade, nem deveria ter férias. Onde já se viu, escola fechar? Mas todos sabem que, tirando a educação física e o recreio, o que mais as crianças amam na escola são as férias.

Do que seriam as memórias da infância sem as férias? Nada de lição de casa. Nada de tabuada e fórmulas matemáticas para decorar. Nada de trabalhos de arte com material reciclável. Nada dos afluentes do rio Amazonas ou do ciclo da água. Nada de tabela periódica.

De que seriam as avós, tios e padrinhos se as crianças não tivessem férias? As férias deles seriam um tédio, absoluto. Aposto! As avós teriam que ficar amuadas com seu crochê, suas novenas e o bate-papo de final da tarde com a vizinha. Os avôs fuçariam na horta, pescariam e fariam sua fézinha sossegadamente. Os tios e tias poderiam ir para o sítio fazer churrasco, beber cerveja e balançar na rede sem ter que se preocupar com o que as crianças estão fazendo, se estão mexendo com aranhas ou se encontraram um ninho de cobras. Nada como ter um parente com casa no interior.

Só nas férias é possível ir tomar banho em cachoeira. Passar a manhã inteira, ou talvez o dia inteiro, vendo desenho. Comer todos os dias bolo, biscoito, picolé, sorvete, bala, pirulito e outras guloseimas. Só nas férias é possível brincar sem se preocupar com a hora de dormir porque amanhã cedo tem escola. Só nas férias é possível brincar na pracinha e jogar bola até se cansar.

A vida da criança de cidade grande, que mora em condomínio, cujo passeio mais interessante é dar uma volta no shopping, não se compara ao glamour da criança que passa as férias rolando na grama duma casa de avó e vai dormir se coçando toda picada de mosquito. O que é mais legal: um sorvete com gosto de nada do McDonald’s ou correr atrás do moço do carrinho de picolé que está assoviando seu apito a uma (ou duas?) quadras dali?

Claro. A criança que passa as férias num condomínio vai se divertir de outras formas. Netflix, videogame, irmãos chatos, leitura… a criança que passa as férias lendo, aos quinze anos já terá lido a obra completa de Conan Doyle, a saga do Harry Potter umas três vezes… assistido a saga dos Vingadores umas cincos vezes… ou seja, será um jovem adulto chato e arrogante, porque só ele saberá todas essas coisas. Aos dezoito já terá lido todo o Dostoiévski e será fã do Zack Snyder. Um insuportável.

Brinco, pois minhas filhas são crianças de condomínio de cidade grande. Elas não têm o privilégio que eu tive de ter uma avó que morava numa casa de madeira com quintal de terra perto de um córrego onde a gente ia tomar banho escondido. Elas não têm o privilégio que eu tive de poder ir pra cachoeira do rio Espingarda em Porto Vitória e lá estarem umas dez pessoas, e não duzentas, como agora. São outros tempos. Fico imaginando que tipo de redações sobre as férias sairão nas escolas nesse começo de ano letivo. Aliás, aposto que nem se fazem mais redações sobre o tema. Está fora de moda. Conta comigo, na minha modesta opinião um dos melhores filmes sobre as férias, já nos anos oitenta falava de outros tempos com saudade. Aí me pergunto sobre o que escreverão os jovens e crianças de hoje quando forem lembrar da sua infância?

Jornal Caiçara, 24/2/2024 (https://jcaicara.com.br/2024/02/24/ferias/)

Latim em pó

O português que falamos no Brasil, ou o português brasileiro, tem um jeitão diferente do português europeu. Podemos nos perguntar por que ele tem essa “cara”, por que falamos do jeito que falamos, por que é diferente do português d’além mar. A resposta para essa pergunta só pode vir do estudo da História, e da história da própria linguagem, daquelas forças que agem para que as línguas mudem. O livro recém lançado de Caetano Galindo, Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português (Companhia das Letras), narra essa aventura, emprestando o título da obra de outro Caetano, o Veloso, da canção Língua.
Caetano Galindo é professor do Departamento de Linguística e Literatura da Universidade Federal do Paraná, é escritor e tradutor de James Joyce, Tomas Pynchon, e David Foster Wallace, entre outros escritores. Toda a sua experiência como professor de linguística histórica (e também como artífice da palavra) está no livro. Sua habilidade em explicar (ou descomplicar?), pode ser atestada em cada página em que apresenta grandes teses que mudaram nossa compreensão do funcionamento da linguagem e do próprio português. Esse é o grande mérito dos bons livros de divulgação. Nesse aspecto, ler o livro não é apenas uma experiência de adquirir conhecimento, é também fruir uma história bem contada. Tenho certeza de que para o leigo será um agradável passeio, não apenas pela paisagem, mas também pela sintaxe adorável do guia. Além da introdução e da conclusão, são dezessete capítulos, que passam tão rápido que, quando vemos, já se acabaram. Caetano tem grandes poderes, e sabe usá-los com responsabilidade.
São dezessete porque a história é longa e há vários temas paralelos que acabam se aproximando. Assim, ele opta por começar a viagem partindo não do desembarque da língua nessas terras com Pedro Álvares Cabral e sua turma, mas partindo da história do latim. Uma história que em si poderia ser contada em outro passeio.
Alguns capítulos nos apresentam teses básicas da linguística, como a constatação de que todas as línguas mudam, de que todas variam no espaço e no tempo, de que as línguas podem interferir umas nas outras etc.; também desconstrói uma tese em particular sobre o português, a de que seria uma língua difícil. Os mitos sobre a linguagem em geral e sobre o português em particular são como insetos no campo. Por mais que a gente mate um, em pouco tempo aparece outro que precisará sem combatido da mesma forma. Se nem a astronomia está livre desses retornos (olha o povo da terra redonda por aí fazendo furdunço), quem dirá nós, meros estudiosos da linguagem que todos os anos precisamos convencer os calouros dos cursos de Letras de que não existe língua mais difícil que a outra, que as línguas não se degeneram, que os jovens não estão matando a bela língua do Padre Antônio Vieira e que hoje em dia ninguém mais sabe escrever…
Assim, a história começa com os romanos e seu império. Por isso ela demora um pouco para chegar até nós, um dos poucos defeitos do livro. Mas é necessário desenrolar essa cantilena, pois ela ilustra uma constante da história humana, e consequentemente, das línguas: o contato e a troca. Além de terem subjugado e dominado boa parcela do mundo da sua época, os romanos conseguiram a proeza de impor sua língua aos povos dominados, especialmente na Europa.
Como vemos até hoje, quando há comércio e troca cultural, também há troca linguística. Não é preciso ser um otaku pra saber o que é anime, sushi, sashimi, temaki e pra ter visto Jaspion ou Meu vizinho Totoro. Isso que o Japão está lá do outro lado do globo! Imagine o que aconteceu quando os romanos chegaram na península Ibérica ou na Gália? Com o contato, trocamos objetos, costumes, crenças e também as palavras. Essa troca é o que mais nos salta aos olhos, óbvio. Mas uma das grandes questões atuais é como esses contatos influenciam áreas mais profundas da gramática das línguas. Poderia mudar o sistema sonoro, a forma como conjugamos verbos, como colocamos pronomes, como construímos orações?
Aparentemente sim. Mas não pense que os romanos enviaram professores de latim bem treinados e munidos com métodos avançados de ensino de idiomas. Os enviados às províncias eram (geralmente) soldados, colonos e baixos funcionários da máquina imperialista. Ou seja, indivíduos de estratos sociais baixos. E o latim que elas levavam não era o que hoje se chama latim clássico, mas um latim popular, o latim do vulgo, o latim vulgar.
Algo similar ocorreu quando as caravelas de Cabral baixaram a âncora no litoral brasileiro. A história do português por essas bandas vai se confundir inevitavelmente com a nossa história. O contato do português com as línguas dos indígenas e dos africanos escravizados vai mudar a cara do idioma. Caetano aponta em vários momentos que esses contatos não geram consequência apenas no plano do vocabulário (na toponímia e nos nomes da flora e fauna). Essa é uma pergunta interessante que o livro explora: até que ponto o contato do português com as línguas indígenas e africanas foi capaz de mudar o português? Essa nossa tendência a formar sílabas com a estrutura consoante-vogal, eliminando encontros consonantais, seria um indício dessa influência, como nas palavras pneu, que pronunciamos “peneu”? A marcação de concordância nominal apenas no primeiro elemento da expressão, como em os menino, as pessoa seria outro?
Como o autor diz logo de cara, o livro não é uma história aprofundada, mas um passeio pelas etapas históricas de formação da nossa língua. Como o assunto é bom, e o guia experiente, falo com tranquilidade que vale a viagem.

Publicado no Jornal Caiçara, 04/03/2023 (https://jcaicara.com.br/2023/03/04/latim-em-po/)

O esporte favorito do professor é reclamar de aluno

Essa semana um professor universitário rateou no Twitter que os alunos não leem os textos das aulas. O tuíte rendeu um pequeno bafafá. Para ele, é difícil entender esse comportamento, já que, em tese, esses alunos estão num curso que escolheram.

Como é costume meu, lá vou eu falar da minha experiência na coisa. É o que consigo oferecer.

Fiz graduação numa época difícil, fim dos anos 1990, início dos 2000. Eu não tinha grana para comprar os livros de inglês e sempre me faltava para tirar cópias dos textos. A biblioteca da FAFIUV na época era ridícula de pequena e também não tinha material para todos os alunos. Lembro de que comprei apenas os Fundamentos da Linguística contemporânea, do Edward Lopes naquele primeiro ano. Foi o que deu pra fazer. A professora de sociologia passava uma carga grande de leituras e não li a metade, até onde me lembro. Mas outras disciplinas eram mais tranquilas, como a Teoria Literária, que não tinha lá muita leitura teórica. Ou vai ver eu não tinha grana pro xerox mesmo e me virava assistindo as aulas, fazendo anotações ou emprestando o texto do povo.

Claro, aos poucos fui comprando outras coisas, como uma gramática, um bom dicionário de inglês… e ao final do curso eu tinha um pequeno acervo. Pequeno mesmo.

Como professor eu gosto de dar leitura pra moçada, mas ao mesmo tempo tenho consciência de que o público do curso de Letras é, na sua maioria, um povo que também trabalha, mora longe, vive com grana contada etc. As disciplinas que eu leciono são mais ‘técnicas’, digamos assim, o que me permite assumir ali um livro texto e não ficar entupindo eles de referências. A vantagem dos livros-texto é que eles apresentam o conteúdo básico e essencial da área. Quando quero discutir algo a mais coloco como referência complementar e sugestão de leitura. Hoje temos a vantagem de digitalizar os textos, assim ninguém mais precisa ficar gastando com fotocópia. Sem contar que o preço dos livros não é tão caro assim e as editoras volta-e-meia fazem promoções.

Perguntei aos meus alunos se eles conseguiam vencer a carga de leitura das disciplinas que estavam cursando. Ninguém disse que conseguia. Se nas minhas disciplinas imagino ali um conteúdo por volta de 15-20 páginas/aula, certamente tem professores que pedem mais. Muito mais. Não os julgo. Também adoraria usar o manual do Saeed (Semantics, Blackwell) com 500 páginas.

No mundo ideal, nossos alunos se dedicariam exclusivamente ao estudo em sala de aula durante 20h por semana, o que sobraria outras 20h para leitura e outras atividades. Pesquisas mostram que 61,8% dos alunos de instituições privadas trabalham, enquanto nas instituições públicas o percentual de alunos que trabalham é de 40,3% (Agência Brasil: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-05/mapa-do-ensino-superior-aponta-para-maioria-feminina-e-branca).

Que os alunos não leiam não me surpreende. Acho até que eles tentam (tá, eu sou um bom moço que acredita ainda na boa disposição dos jovens para o aprendizado). Mas é aquela coisa, tem dias em que o que o aluno quer é maratonar o livro que está lendo por prazer (risos) e talvez a nossa aula seja aquela aula porre que o aluno vai só porque é obrigatória mesmo.

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Documentário: O silêncio dos homens (Youtube). Vi semana passada. Documentário extremamente necessário. Tenho pensado muito sobre masculinidade tóxica (também porque tenho lido muitas mulheres, sempre gostei de lê-las, a propósito) e a dificuldade dos homens em falar dos seus sentimentos é só mais uma faceta dessa cultura masculina heteronormativa que só faz mal a todo mundo.

Dario. (Caio R. Bona Moreira, Humana). O livro faz parte da coleção Biografemas. Além dos traços típicos da biografia, o livro é o relato de uma jornada pessoal. Dario Velloso foi objeto da tese de doutorado de Caio e nesse relato curto o autor se volta para a busca pelo escritor enquanto personagem, tocando em vários aspectos da vida do biografado, um dos grandes nomes da poesia curitibana simbolista e grande personalidade da capital paranaense no início do séc. XX.

Ser pai

Nunca quis ser pai. De verdade. Às vezes eu me pergunto por que é que eu fui me casar justamente com alguém que eu sempre soube que queria ser mãe. Mas é aquela coisa, a gente vai lidando com o que consegue controlar, os próprios medos, expectativas, desejos… entidades mutantes… e o negócio é que eu casei, passei num concurso público, me mudei para Porto Alegre e… por que não ser pai? Esse é ciclo tradicional da vida adulta e eu fui me deixando levar.

Eu poderia ter batido o pé. Ela sabia. Tínhamos conversado sobre isso algumas vezes. Eu não me via como pai. Eu, Luisandro, pai? Um colega de universidade, naquela época em que a Gisele estava tentando engravidar, me disse que também não pensava em ter filhos quando era jovem (aliás, coisa muito comum isso de não querer ter filhos entre professores universitários). Só que aconteceu. Depois de ser pai de duas meninas, ele não se arrependia. O sentido era o oposto. Naquela altura da vida, já cinquentão, disse que estaria arrependido se não tivesse sido. Aquilo virou uma chave em mim. Gosto de experiências novas e ao não ser pai eu estaria me privando de emoções que só filhos podem proporcionar.

Pula pra 2022. Sou pai de duas meninas, Gabriela (8) e Sofia (4).

Aparentemente, ser um bom pai nunca foi uma grande questão na arte (no cinema, na literatura). Deus pediu a Abraão pra sacrificar seu filho e ele foi lá sem pestanejar, embora fosse só um teste (Gên., cap. 22). Esse ‘deus pai’ da Bíblia eu dispenso. O mais comum na ficção e na história é os filhos estarem loucos pra tomarem o lugar do pai, ainda mais se houver poder envolvido (Édipo, Rei Lear, César etc.). O Jack Pearson, de “This is us”, é um bom pai, faz tudo pela família e, em vários sentidos, se sacrificou por ela. Talvez porque não exista aí uma questão.  No que eu discordo.

Não acho que seja fácil ser pai. Lembro dum texto do Marcos Piangers que dizia que o principal é estar ali, presente. Crianças são seres que demandam atenção e dão trabalho. Muito. Mais do que a coisa toda de ser pai (colocar alguém no mundo), o que mais me assustava era isso do trampo envolvido: dar banho, trocar de roupa, dar comida, levar pra escola, ajudar na lição, brincar, ter que ver todos os episódios de Ladybug e Princesinha Sofia etc. E o que me pega nem é tanto fazer essas coisas todas, que eu faço (reclamo, mas faço).

O que me afeta muito é que estou deixando de ver minha série pra ver as delas, deixo de ler meu livro para ler uma história para elas dormirem, há um bom tempo não vou ao cinema, e não me lembro da última vez que fui num show para ouvir música ao vivo ou num restaurante sem espaço kids e sem me preocupar se tem também alguma coisa para elas comerem lá. Basicamente a gente deixa de ser a pessoa mais importante da própria vida (frase que vi num seriado cujo nome me escapa agora). E isso assusta um bocado uma alma narcisista e egoísta como a minha. Na real, confesso, o que eu acho difícil é dar carinho.

A gente, bicho homem, não foi ensinado a dar carinho.

Parêntese: tive uns exemplos meio bostas de pai na família. Todos uns cachaceiros, grosseiros. Sabe esses avós grisalhos fofos que brincam com os netos no Natal? Pra mim é ficção. Meu avô materno largou minha avó quando minha mãe e meus tios estavam ali com seus dez anos e pouco, a deixou sem pensão, tirou as filhas meninas da escola e as colocou para trabalhar de domésticas. Baita exemplo. Do avô paterno me lembro vagamente, convivemos pouco. Sem falar que não conheço meu pai biológico…

Mas aí a vida me deu duas filhas meninas. E elas demandam muito carinho. Elas querem colo, querem ir no cangote. Digo que elas não são humanas, são micos que querem viver dependuradas no meu pescoço. Elas choram porque acabou a bateria do tablet, elas choram porque estão com sono e não querem dormir, elas choram porque não querem tomar banho, elas choram porque não querem sair do banho, elas choram porque o cachorro deu uma mordidinha que machucou a mão delas…

Uma voz em mim me diz pra sair correndo, outra pra ir lá dar um tapa na bunda delas, outra pra dar um grito. Pois foi isso tudo que eu vi os homens da minha família fazendo. E talvez tenha que ver um tantinho com essa minha personalidade desajustada também (torcendo aqui pra terapia concertar isso). Decididamente, não quero ser como eles. Mas outra também diz pra ir lá e dar um abraço, pegar no colo e fazer uma coceguinha. Na maioria das vezes, essa é a voz que tem vencido.

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Trecho do Papo de Segunda dessa semana sobre paternidade (onde se inscreve pra ser amigo desses caras?). Ter um programa de televisão falando dessas questões é sintoma disso tudo que eu falei acima.

Frentear

Não sei se os jovens de hoje conhecem o conceito de ‘frentear’, uma atividade que mostra muito da realidade socioeconômica dos anos 90 e início dos anos 2000, pelo menos na cidade em que eu morava na época. A “minha galera”, quer dizer, a galera que meio que me adotou, era uma mistura confusa de metaleiros de diferentes bairros da cidade, aglutinados por alguns líderes com essa capacidade de fazer aquele povo se reunir pra beber e falar de bandas, gibis e leituras – especialmente Paulo Coelho, uma febre naqueles anos 1990 (tinha uma longa lista de espera para ler seus livros na biblioteca do colégio).

O frentear era basicamente ir para a frente da balada ou da lanchonete da moda. Como muitos de nós não tínhamos dinheiro (ou idade) para se sentar no bar, ou entrar no clube, o jeito era fazer uma vaquinha pra comprar alguma coisa pra tomar e ficar ali pela frente bebendo e conversando. As festas aconteciam em clubes, o Concórdia e o Aliança. Os sócios não pagavam entrada, e pagar para entrar não era lá muito barato.

Suspeito que não conheçam. Faz muito tempo que não saio à noite, mas o fenômeno me parece ter desaparecido, embora nas grandes cidades eu imagino que os jovens tenham pontos de encontro para paquerar ao ar livre nos finais de semana.

Lendo e vendo

O declínio do império americano (1986): revi o filme Denys Arcand final de semana. Ele tem mais de 30 anos e me soa hoje como ‘a vida sexual dos intelectuais canadenses de meia idade feios’. O filme é bem humorado, mas acaba num tom ácido. Tem o professor pegador divertido, tem o professor que se apaixona pela aluna muito mais nova, a solteirona com um homem mais novo, o gay (provavelmente com AIDS, não entendi se está ou não).

Saturno translada (7 Letras, 2022). Lucas Lazaretti, além de escritor, é tradutor e doutor em Filosofia pela PUC-PR. Fiquei intrigado pelo ‘saturno’ do título e demorei pra entender que tem a ver com a chegada dos 30 anos e a maturidade. O livro trata de um grupo de amigos que por essa idade enfrentam dilemas pessoais e profissionais. O músico que volta de uma temporada no exterior e está sem perspectiva; o artista que se exila da Alemanha com medo das hordas conservadoras; a recém-doutora que não consegue trabalho nem bolsa de pós-doutorado e que vê no exterior uma oportunidade de continuar na sua área de pesquisa; o psicólogo suicida. Todos são personagens interessantes, cujos dilemas e questões estão inseridos nesse Brasil em que vivemos, narrados por uma voz com muito estilo e erudição.

Dois livros de crônicas

Tem dias que eu sinto que não tenho talento pra nada. Meio que é um milagre eu ter dado certo na vida como professor e linguista, que periódicos publiquem meus artigos, que editoras tenham topado publicar meus livros. Nem pra fazer amigos eu tenho lá muito talento. Como aquele meme, sou o introvertido que é sempre adotado pelos extrovertidos onde quer que chegue.

Tergiverso (e isso tudo aí é assunto pra outro texto). Por que na verdade eu queria era falar do talento de dois caras que eu conheço para a crônica. Não é pra puxar o saco, não! Eles mandam bem demais. Escrevem com aquela naturalidade do olhar do poeta que prefere fazer prosa e tirar um sarrinho. Se me permitem a metáfora, a crônica é um ensaio de bermuda e chinelo de dedo. Até onde eu entendo essas coisas, né!?

Leonardo Antunes foi meu colega na UFRGS. É um tímido desavergonhado. Em pouco tempo ficou amigo de todo mundo. Aposto que em seis meses fez mais amizades no meio literário do que eu fiz em sete anos de Porto Alegre. A pequena coletânea de crônicas que lançou recentemente, Diários de um paulista em Porto Alegre, é uma delícia. Só tem um defeito grave: são poucos textos. Trata dos desencontros da linguagem, rotinas de polidez, e especialmente da alimentação e rituais à mesa (como o uso de palitos de dente).

O Yuri Al’hanati eu conheci esses dias num churrasco. Depois que tomei conhecimento das coisas que ele faz, fiquei me perguntando como é que eu vivi tanto tempo sem saber da existência do blogue (https://livrada.com.br/) e do canal do Youtube. Na real eu não sou lá muito fã de canais que comentam livros, justo porque não tem graça se eu não li a obra comentada. Mas o canal do Yuri não é só isso. Tosquice minha, óbvio! Sou um rato digital que zanza pelas quebradas erradas, eu acho.

Yuri é autor do recente A volta ao quarto em 180 dias, uma coletânea de crônicas sobre o primeiro ano da pandemia. Diferentemente de um Rubem Braga encastelado na sua cobertura com vista para o mar em Ipanema, ele é um dos muitos adultos solitários que habitam essa metrópole de cimento e ônibus biarticulados que é Curitiba, se contentando com uma vista para o pôr do sol, cuja trilha sonora é o som das furadeiras e makitas. Suas crônicas falam de objetos, como uma bola de poeira e cabelos num canto, a máquina de lavar roupas; sobre atividades, como cozinhar para si, beber vinho, maratonar séries; e das coisas da pandemia: máscaras, distanciamentos, testes… embora trate dessas coisas todas dum jeito bem informal, ele eventualmente resvala para a reflexão sociológica: “A máscara é a nova camiseta, usada no calor por convenção e decência, o respeito pelo próximo. Sem ela, somos mais selvagens, menos sensíveis, menos humanos”.

E é justamente essa reflexão mais elaborada misturada com o cotidiano o que dá para as crônicas esse jeitão massa que elas têm.

Procurando defeitos

Isso de ser linguista e escritor vai tirando da gente uma certa ingenuidade em relação à linguagem. Não posso mais falar e escrever com a liberdade daqueles que simplesmente jogam os chinelos a um canto e entram na quadra de terra batida pra bater uma bola.

Mas isso não é coisa só minha (nem poderia ser, né?). Nas redes sociais o povo é habilíssimo nesse escrutínio. O que me lembra daqueles caras que acham defeitos mínimos em cenas de cinema. (Haja tempo!) A literatura ainda se salva porque ela é feita de recortes, e o que fica de fora, muitas vezes, importa bem pouco.

Li no início do mês, Diário da Queda (Companhia das Letras, 2011), de Michel Laub. Me impressionei que ele falasse tão pouco, quase nada da mãe. Das mães da família em geral. Excluindo o amigo sem mãe, o narrador certamente tem uma e ela quase não aparece na narrativa. O foco está na relação entre os homens da família e tal. Entendo. Claro que entendo. Mas significa, não? Fiquei com a impressão de que a mãe dele era um ser passivo na relação dele com o pai, especialmente nos momentos decisivos dessa relação.

Em Better Caul Saul, uma complicação chave da segunda temporada é a adulteração de alguns documentos promovidas por Jimmy para ferrar seu irmão Chuck. Chuck tem uma intolerância à eletricidade. Vive às escuras, sem eletrônicos de qualquer espécie por perto. Por isso fiquei surpreso quando Chuck diz num episódio depois que seu suposto erro aparece que ele tem certeza de que digitou corretamente os documentos. Como assim ele “digitou”?

Muita gente se surpreende com os rolês das crianças em Stranger Things? Cadê os pais? Por que estão na rua até tarde? Crescer num subúrbio americano deve ter lá suas vantagens, mas crescer numa cidadezinha do interior do meio-oeste (que pra mim não tem nada de oeste, só meio mesmo) tem outras, como poder ir e vir de bicicleta pra todos os cantos e a cidade ter apenas um punhado de policiais. Essa foi a minha infância em União da Vitória. Eu e meu irmão mais novo apenas falávamos para nossos pais que estávamos saindo para ir na casa de algum amigo ou jogar bola na praça do bairro. Eles não se davam ao trabalho de ir lá conferir, claro. E muitas e muitas vezes íamos para outros lugares.

Por isso evito ler resenhas e críticas de filmes e livros antes de tomar contato com eles. Cruzei só de relance com o título de uma resenha do livro novo do C. Tezza, Beatriz e o poeta, e o título falava em ‘personagens ruins’. E agora, ao ler o livro, tenho achado o personagem do Gabriel, o poeta, um completo porre. Verborrágico, metido, até um bom tanto inverossímil (ninguém fala daquele jeito). É o Luisandro quem está achando isso mesmo ou minha leitura foi enviesada pelo que li?

Filme:

Deserto particular (HBO). A premissa é muito boa. Um oficial da PM é afastado após um ato intempestivo de violência durante uma instrução de soldados. Daniel, o personagem principal, cuida do pai, que tem Alzheimer, com quem mora, e que é PM aposentado. O personagem tem várias nuances e vamos sendo apresentado a elas aos poucos. Ele parece ser um macho tóxico por todos os caracteres que associamos a sujeitos que são militares, além de ele ter um biotipo fortão, calado e não reagir muito bem quando a irmã lhe conta que está namorando uma mulher. Isso tudo a gente descobre nos primeiros minutos do filme. A intriga começa a ficar interessante quando Daniel decide ir atrás da baiana de Sobradinho com quem vem trocando mensagens pelo Whatsapp. Não sabemos muito bem o que motiva a viagem, além do fato de ela ter parado de lhe responder. É apenas a paixão que o move ou é a vontade de simplesmente sair de Curitiba e se afastar dos problemas (o processo disciplinar, o pai… ). Chegando lá, ele procura Sara e aos poucos vai descobrindo que ela não é muito bem quem ele esperava. Li resenhas elogiosas, outras nem tanto. Para mim é nota 6. Os diálogos são bons, o enredo é bom, mas tem algo ali que não me agradou, como a mudança de perspectiva. O filme começa centrado em Daniel e num certo ponto passa a tratar mais da Sara.

A história das cidades

Tenho uma relação peculiar com as cidades em que morei. Nascido em São Miguel do Oeste (SC), vivi lá alguns nacos da infância, mas também vivi parte dela em Chapecó (SC). Não me sinto pertencente a essas cidades, como se elas fossem parte indelével de quem sou. Me sinto mais porto-união-vitoriense, essa cidade que é uma e ao mesmo tempo é duas, metade Paraná (União da Vitória) e metade Santa Catarina (Porto União). Vai ver porque eu fui para lá aos doze anos e por lá fiquei até os vinte e dois. Dez anos, da pré-adolescência ao início da vida adulta. Lá construí minhas principais amizades fora do círculo profissional. Lá conheci minha esposa e mãe das minhas filhas. Meus pais estão enterrados sob aquele solo.

Tem alguma coisa na água. Claro que tem. O rio sempre exerceu um fascínio enorme sobre mim. As águas volumosas do Rio Iguaçu me assombravam e me atraíam. Eu via aquela massa marronzada seguindo seu curso lento e tinha vontade de pegar uma canoa e ir ver como ele desaguava na sua foz; queria me deparar com as criaturas que se dizia moravam no seu leito e que vez por outra inventavam de fazer as águas se elevarem e inundarem boa parte da cidade.

E tem a história. Mesmo não tendo sido palco de batalhas do Contestado, aquele trilho de trem cortando a cidade em duas era a testemunha de um Brasil que não existe mais, de uma estrada que ligava Porto Alegre a São Paulo e que simplesmente foi abandonada. Não me recordo dos trens circulando, pois morávamos naquele início dos anos noventa num bairro distante do centro e deles. Hoje vejo os trilhos do antigo pátio de estacionamento das locomotivas tomado pela grama e pelo mato, com todos os galpões e oficinas já demolidos e tempo imaginar o movimento que ocorria por ali no tempo da pujança econômica da cidade: dezenas de madeireiras e fábricas de esquadrias de madeira, fábrica de cerveja, moinhos de trigo, olarias, dois jornais, uma faculdade estadual e uma municipal, várias tipografias, clubes…

Era a história daquele lugar que me fascinava. Li Conhecendo Porto União porque meu pai trabalhava na gráfica que tinha impresso o livro e ele trouxe um exemplar para casa. Era um livro que trazia informações históricas, econômicas e geográficas da cidade.

A cidade tem dois estádios de futebol, o Antiocho Pereira e o Ferroviário. Até onde sei, boa parte dos terrenos da antiga rede ferroviária foram dados para a prefeitura. E a prefeitura de União da Vitória pretende leiloar o terreno do estádio do Ferroviário. Entrei lá uma ou duas vezes, se isso, não me lembro para ver ou fazer o quê. O estádio fica próximo do antigo pátio dos trens e da vila dos ferroviários, onde também há um clube. A construção é modesta, mas me impressionava pela imponência, embora seja uma construção simples que imagino que deva ser praticamente a mesma desde a sua construção nos anos 1940.

A cidade em que eu vivi não existe mais. A cada semestre um novo prédio surge ocupando o lugar de uma construção histórica. Os trilhos despareceram até da antiga ponte férrea, agora usada apenas por ciclistas. Alguns poucos estão sendo restaurados para a criação de passeios com uma antiga locomotiva, mas não sei que caminho fará, já que várias das pontes férreas da região estão abandonadas e imagino que logo, logo cairão aos pedaços pela ação do tempo.

Sempre que leio notícias de descobertas de escavações de civilizações antigas (Roma, Grécia, Egito etc.), penso no momento em que alguém deve ter decidido cobrir de terra um lugar daquelas cidades antigas e construir algo novo em cima. Nós não deixamos de fazer a mesma coisa. Continuamos o ciclo eterno de destruir o velho para se construir coisas novas. Preferimos por tudo abaixo a modernizar ou preservar.

Mas diferentemente das civilizações antigas, ali, daqui a dois mil anos, não haverá nada por baixo para se desenterrar.

Links

Sobre o leilão do estádio e o time dos ferroviários.