O ensino de português na escola e na universidade

Sempre sinto uma dose de culpa quando vejo essas reportagens que mostram alunos recém-saídos do ensino médio (EM) ou graduandos se dando mal em redações, ditados, entrevistas ou atividades que requerem o uso da língua portuguesa (LP), afinal, parte do meu trabalho como professor universitário é formar professores. Claro que o português é o centro de tudo e há três causas para o fracasso do ensino público: a) despreparo do professor; b) estrutura escolar (currículo equivocado, espaço físico, bibliotecas, etc.); c) cultural: nossa sociedade não valoriza as atividades de leitura e escrita como um bem a ser cultivado, o discurso é bonito, mas na prática ainda lemos menos livros per capita do que a Argentina. Não quero falar disso exatamente, mas há uma ligação entre esse problema e o que eu faço: ensinar LP para calouros. A pergunta inevitável é: por que precisamos ensinar LP para quem sai do EM de onde deveria sair sabendo tudo que é preciso saber para seguir a vida profissional? Não é uma forma de “consertar” ou “amenizar” o fracasso do ensino de português nas nossas escolas? Eu diria que sim e que não. Vejamos os dois lados.

Sim, estamos consertando o ensino fracassado. Primeiro devemos ter em mente qual o objetivo do ensino de LP nas escolas. Lendo os documentos oficiais (os parâmetros curriculares), o leitor vai encontrar expressões bonitas como “cidadania”, “formação integral do indivíduo”, “preparação para o mercado de trabalho”, etc., tudo isso é algaravia pra dizer que o objetivo da escola é formar cidadãos capazes de utilizar a leitura, a escrita, e a fala em situações sociais com competência. Afinal, não escrevemos, não lemos e não falamos em todas as situações sociais da mesma forma. O fato é que mudamos a organização da nossa produção linguística, quer estejamos no trabalho, quer estejamos em casa, quer estejamos com amigos.  Ensinar LP na universidade seria então ensinar o que o cidadão deveria ter aprendido no EM e não aprendeu, coisas como ortografia, pontuação, expressar-se oralmente sem usar gírias (que nada mais é do que mostrar para o aluno que se precisa mudar a forma como se fala dependendo da situação, uma tarefa fácil, mas poucos professores fazem isso) e efetuando todas as concordâncias, tarefa impossível de se realizar, se a pessoa não mergulha no uso culto do português (escrito e oral: não basta ler e ouvir, é preciso pensar e analisar o que se lê e o que se ouve). O que chamamos de “português” não deveria ser um conjunto de “conteúdos”, mas um conjunto de competências que os jovens deveriam adquirir, de posse delas (ler, escrever, falar, ouvir) ele deveria ser capaz de se sair bem em qualquer carreira que escolhesse: de instalador de telefone da Oi, até engenheiro mecatrônico ou atendente de teleatendimento.

Não, tem coisas que não precisam ser ensinadas no ensino médio e deveriam ser ensinadas na universidade. Para quem não sabe, o ensino de LP na universidade busca essencialmente refinar as capacidade de leitura e escrita dos calouros. Isso acontece através de atividades de escrita e leitura que trabalham com os gêneros textuais que circulam, preferencialmente, na academia: resumos, resenha, fichamento, relatório, projetos, artigo, ensaio, etc. Para um aluno que conclui o ensino médio e não vai entrar na universidade esses gêneros não são importantes, e portanto, não precisam ser ensinados na escola. Será? Eu diria que as duas premissas estão erradas:  a) a necessidade de refinar as habilidades de leitura e escrita; b) a universidade precisar ensinar os gêneros que utiliza. Há várias formas de resumos circulando na nossa sociedade, tais como sinopses de filmes que lemos em jornais e sites, na quarta capa dos livros ou na orelha sempre temos uma breve descrição do enredo, no começo ou no final dos artigos científicos, projetos e monografias temos um resumo (teses e dissertações são monografias também, só cumprem funções diferentes e se exigem padrões qualitativos diferentes também aos autores delas), que cumpre a mesma função em todos esses lugares: apresentar o conteúdo ao leitor e seduzi-lo a ler a obra. O professor de português universitário dirá: tá, cara pálida, e artigo científico? Não existe em outro lugar além das revistas acadêmicas. Ledo engano, existe sim. Se o professor lesse revistas como a Scientific American de vez em quando saberia, ou mesmo grandes jornais nacionais, que ocasionalmente publicam ensaios de cientistas. Chamados de “artigos de divulgação” esses textos possuem basicamente a mesma estrutura dos artigos acadêmicos, embora em linguagem mais acessível, e sem a profundidade de discussão que se exige dos textos que são submetidos aos periódicos acadêmicos. Se esses textos fossem lidos e estudados na escola: nas aulas de física, química, biologia, e mesmo língua portuguesa ou história, quando o aluno chegasse na universidade seria um leitor e escritor competente. Professores de física, química ou matemática que dizem que não se precisa saber ler e escrever para ser um físico, químico ou um matemático são estelionatários e deveriam ser demitidos. Só pra citar dois importantes físicos do século XX, Einstein e Feynman possuíam um grande apreço pela escrita e pela popularização da ciência. Assim, o meu argumento essencialmente é: não se ensinam os gêneros da academia na escola porque não se ensina ciência na escola. Todo mundo já deve ter feito aquele experimento de cultivar um grão de feijão no algodão. O professor provavelmente pede um relatório(!), que nada mais é do que um narração que descreve dia a dia o que aconteceu com a semente, as transformações pelas quais ela vai passando ao longo dos dias, desde que bem cuidada e aguada. Isso não difere em nada de um pesquisador da Embrapa que está estudando novas sementes de soja para aumentar a produtividade e fazer a semente resistente às pragas. E por que no ensino médio não se fazem experimentos? Lembro que as escolas em que eu estudei possuíam laboratórios fantásticos, cheios de pipetas, tubos de ensaio e outros vidros de formatos diferentes que não sei nomear, no Colégio Estadual Túlio de França (União da Vitória-PR) tem até um esqueleto (espero que ainda esteja lá), não é qualquer escola pública que tem o privilégio de ter a estrutura que aquela escola tinha, mas porque a gente ia pro laboratório como se fôssemos fazer uma excursão a um museu, em que não tínhamos o direito de tocar em nada, passar em linha pelo microscópio e olhar rapidamente o que tinha na lâmina, meramente um exercício de curiosidade (o sangue é assim?!).

Mas por que então não se ensina o português nas escolas se utilizando desses gêneros? Por uma série de razões: a) currículos equivocados: a perspectiva conteudista e vestibuleira torna o EM uma grande apresentação de períodos literários e redação dissertativa, a redação do vestibular e dos concursos, que é importante claro, mas que deveria ser um subproduto, não um objetivo final do ensino (qual a diferença entre o ensino público e o privado? Há muitas, mas a principal é cultural, meninas de classes humildes saem da escola para virar balconistas, e meninas de classe média saem da escola privada para virarem psicólogas, farmacêuticas, fonoaudiólogas, etc., os professores sabem disso, e fazem a sua parte para que esse destino se cumpra); b) professores mal-preparados: infelizmente muitos professores dos cursos de letras parecem ter orgulho de dizer que não fazem ciência (não sei o que fazem na academia então) e essa desvinculação entre o fazer científico e o fazer pedagógico (o tipo de ideia que colocam na cabeça dos graduandos e futuros professores de português) faz com que tenhamos propostas pedagógicas mirabolantes desligadas da realidade; c) se tivéssemos uma política séria de ensino de língua ela estaria inexoravelmente vinculada a uma perspectiva interdisciplinar: professores da área de exatas e biológicas (matemática, física, biologia) e de humanas (geografia, história, filosofia, etc.) deveriam estar engajados em um projeto escolar de se trabalhar com textos acadêmicos de divulgação: hoje, felizmente, temos revistas como a História, a Filosofia, a Scientific American, a Galileu que são destinadas ao grande público; d) como consequência de (c), projetos de pesquisa interdisciplinares que tivessem como requisitos relatos escritos, em conjunto, o professor de português e o professor de biologia ou história, poderiam desenvolver projetos de escrita em que o biólogo ou o historiador fornece o mote da escrita e o professor de português auxilia os alunos no “como” escrever, possivelmente tornando esse resultado depois público, na forma de escrita de livros, exposição dos trabalhos aos pais, feira de ciências da escola, escrita coletiva de um artigo de divulgação a ser enviado para o jornal da cidade, etc. As alternativas são muitas, falta o quê então: vontade, estímulo, compromisso, gestão eficiente, formação adequada, etc. Como o personagem Walter White de Breaking Bad, o professor de física, química ou biologia das nossas escolas é alguém que não se deu bem na iniciativa privada e virou professor para não passar fome, muito poucos escolhem o magistério como primeira opção (é só comparar o salário de um químico na iniciativa privada com o salário de um professor com graduação para saber o porquê).